Na saúde e na doença, e que nada nos separe.

Histórias como essa já inspiraram filmes campeões de bilheteria. E eu com orgulho e emoção, pude vivenciar um milésimo da vida de um casal que me mostrou que o amor não conhece barreiras… O amor é ponte que nos transpõe para onde quer que estejamos dispostos a ir.

Ali no meu cantinho, pronta para ouvir histórias de amor, observei uma família indo de lá para cá, de olhos nos livros expostos, até que os abençoados livros os atraíram para mais perto de mim. Não tive como não notar com mais atenção que a mulher tinha uma aparência diferente, com sequelas que me fizeram crer que ela havia sido vítima de queimaduras.

Quando me aproximei e expliquei o intuito de estar ali, eles se entreolharam e ele disse:

  • Ixi, se a gente for te contar.  Então olhando para ela, continuou:
  • Vai, conta pra ela. Ao que ela respondeu, tímida:
  • Ah não, conta você.

E eles então começaram… Eu nem pude seguir com as minhas anotações, abracei minha prancheta e fiquei ali ouvindo, admirada e envergonhada diante da minha fraqueza. Não pude deixar de pensar que aquilo sim era amor de verdade.

Um belo dia, como tantos dias na vida de tantos mortais, eles se casaram. Se amavam e decidiram se casar. Meses após o casamento, ela sentiu os músculos repuxarem, sentiu mudanças em seu corpo e foi diagnosticada com um tipo de atrofia muscular severa, que foi comprometendo seu sistema nervoso e muscular, causando deformidades em todo o seu corpo, irreversíveis.

A face e o resto do corpo ficaram com deformidades, a coordenação deixou de existir, as mãos atrofiaram… E eles haviam acabado de se casar. Ela sentiu medo de que ele desistisse dela. Ele sentiu que ela precisava dele, mais do que nunca.

Aquele sonho de quase todo casal, de terem filhos, não poderia ser realizado naturalmente por eles, uma vez que o útero, sendo um músculo, também havia perdido a capacidade de se estender e comportar um bebê. Eles tiveram que lidar com essa frustração, também.

Mas, sendo a vida essa caixinha de surpresas, e tendo Deus um plano desconhecido para todos nós, contra todas as probabilidades, ela engravidou. O médico condenou aquela gestação, o bebê não teria espaço para se desenvolver e o aborto era algo que aconteceria a qualquer momento, podendo ser um risco até mesmo para a vida dela. Mesmo assim, eles decidiram seguir com a gravidez.

Nesse momento eles interromperam a história, apontaram para uma menina de uns 5 ou 6 anos que os acompanhava e me disseram: – O resultado está aí.

Arrepiei naquele momento, arrepio agora ao transcrever isso. Não sabemos nada da vida… A vida é que sabe da gente.

Perguntei se ele em algum momento pensou em desistir da relação, perguntei das dificuldades deles. Ele disse que nunca pensou nisso e ela, sempre sorrindo, disse que “a vida é assim mesmo, fazer o que, a gente tem que viver”.

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A gente tem que viver…

Achando que essa história era um exemplo de perseverança e amor verdadeiro, eu fui dando por encerrada minhas anotações e estava parabenizando-os pelo amor que tinham um pelo outro, quando ele me interrompeu e disse: – Ixi, se a gente for contar tudo, tem tanta coisa nesse meio aí.

Então ele seguiu… Me contou que ficou desempregado, desesperado, pensou em desistir de tudo, perdeu as forças para lutar com as dificuldades da vida que batem na porta de todos nós. Nesse momento da vida, em que a energia lhe faltou, ela o encontrou pendurado em uma corda, já enforcado, agonizando. E ela o salvou.

Ele a salvou. Ela o salvou. Eles me salvaram. Não sei bem quem tem o papel de salvador nessa história… Eu não pude e talvez não tenha querido saber mais, acho que estava ali digerindo toda a minha incapacidade de ser mais persistente diante dos meus desafios, estava ali refletindo na imensidão do amor e do que ele é capaz.

Até aquele momento, eu admirava um homem que passou por cima do orgulho e da vaidade, que honrou o amor que jurou ter por aquela mulher e permaneceu ao lado dela, quando muitos teriam partido. Ele não levou em conta a aparência, as limitações que a doença impunha àquela mulher, ele apenas a amou e cuidou dela, como prometeu cuidar.

Até então, eu achava que ela era uma mulher guerreira e forte, que tinha o amparo e o amor de um homem que se manteve ao lado dela. Mas então pude perceber que a força vinha dos dois lados, e que ela precisou ser forte e determinada por eles dois (eles três), quando a energia dele se esgotou e ele desistiu. Ela não sentou com ele e teve uma conversa para reanimá-lo, ela tirou uma corda envolta no pescoço do homem que ela amava, e que por segundos não havia desistido de tudo, por não saber mais o que fazer.

Eles se foram… Por alguns minutos eu fiquei imersa naquela história, poderia ir embora naquele mesmo minuto sem ouvir mais história nenhuma, para sentar e narrar sobre o amor e a força que ele tem.

Impossível, diante de um exemplo como esse, não olhar para dentro de nós mesmos. Nós desistimos de tantas coisas ao menor sinal de dificuldade. Desistimos do estudo, de um trabalho, de um sonho, de um plano, de um amor. Quando as coisas se tornam complicadas, nós optamos por nos afastar daquilo que fica indigesto.

“Onde está o seu tesouro, ali estará também seu coração”. Só ficamos onde o que existe nos é raro demais para perdermos. Mesmo que nos enxotem, damos um jeito de permanecer por perto, se queremos de fato batalhar por aquilo que nos é tão importante. Mesmo que seja muito difícil, mantemos perto aquilo ao que damos muito valor.

O amor não é frágil… O amor é a rocha mais sólida que eu já conheci. Ele sobrevive às adversidades, constitui base e alicerce para a nossa vida. Onde existe amor, ele não se esgota, sobrevive. O amor não se transforma em nada que não seja amor… Onde existe amor, ele permanece amor, não importam quais sejam as circunstâncias.

O amor desse casal os manteve juntos, unidos em uma dificuldade que não sou capaz de mensurar, não posso dizer sequer que imagino como seja, porque eu não imagino.

Ao vê-los se afastarem eu não lamentei nada em relação a minha própria vida, mas desejei, sinceramente, que houvesse em meu coração esse amor capaz de transpor todas as coisas para cuidar de quem se ama. Talvez esse amor tamanho não seja um amor romântico, talvez não envolva sentimentos carnais…

Buscamos tanto pelo amor em um par que divida a cama e os sonhos conosco… Onde está o amor que nos transforma? Que nos fará transpor essa barreira opaca de sentimentos? Que tipo de amor é esse?

Talvez a gente não saiba nada ainda sobre o amor… Só que ele transforma a vida… Só que ele nos transforma. Só que ele nos transpõe.

Luciana Marques

Fotografia: Nancy Borowick

p.s.: Esse texto faz parte de um projeto, Zen Pelo Bem, onde tive o privilégio de escutar histórias reais de amor e outras coisas.

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