A carta que não mandei

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1960.

18:00 horas. No topo da colina. Ele e ela observam o Sol do final da tarde flertar com a grama, bem verde, e com seus corpos. Ela, de saia longa; ele, de jeans desbotado. Ele:

— Ia te mandar uma carta.

— Uma carta? Para quê? Te vejo todos os dias.

— Mas a carta não era sobre as coisas de todos os dias.

— Pois seria sobre o quê?

— Sobre amor — respondeu desinteressado, enquanto tentava fazer uma joaninha ficar parada em seu dedo.

— E o que você teria a dizer sobre amor? — respondeu num tom zombeteiro, quase que numa repreensão ao garoto, mais novo — Ainda mais numa carta! Viraste poeta, foi?

— Não. Só queria falar sobre amor numa carta, ué. Fazer por querer.

— Pois não fez.

— Porque não quis!

— Arre, acalma-te! Até parece que te ofendes com qualquer besteira. Anda, olha pras nuvens, faz como eu — ela deitou-se na grama macia, levemente umedecida que dá no meio da primavera e abriu um pequeno sorriso — , gosto de imaginar o que tem nas nuvens.

— Não tenho paciência pra isso.

— Pois sempre teve.

— Pois hoje estou sem! Deixe-me consigo, se for para me irritar.

— Mas o quê! — ela sentou-se novamente, como quem perdia o ânimo para brincar de alguma coisa divertida — Todo este bochicho vem daquela carta, é? O que tem essa carta? Fala de uma vez.

— Não adianta te explicar. Por que você acha que eu não te escrevi?

— Porque você anda todo uó ultimamente. Acertei?

— Não. Eu não te escrevi porque não adianta te explicar.

— Você parece tão cabisbaixo, não gostei — ela respirou fundo — Olha, você sabe que eu não sou “dessas”, né meu bem?

— Sei bem…

— Isso foi pra me ofender? Olhe, se for pra descontar sua raiva em mim, eu sei o caminho para casa…

— Não, não, imagine. Desculpe. É que…

— É que o quê? Agora eu é que perdi meu bom humor.

— É que de nada adianta eu falar de amor para uma pessoa que despreza o amor. É isso.

— Eu não desprezo o amor, só não acho que ele é tão importante assim.

— Então por que é que a gente se vê todo dia? Todo dia vemos o pôr do Sol, depois da aula. Por quê?

— Porque é legal.

— E é só isso? É legal? Todos os dias eu desço a rua da escola, passo pela estradinha de barro e sento aqui na colina, que fica perto da sua casa, pra você não se incomodar de voltar caminhando no escuro. Vemos o Sol, conversamos. Isso tudo é só legal?

— É muito legal! Era isso que você queria ouvir?

— Não… Olha… E se, amanhã, do nada, eu parasse de vir aqui?

— Por que você faria isso? Foi algo que eu te disse? Olhe, me desculpe, tá, acho melhor até a gente mudar de assunto…

— Não, não, é só uma suposição. Só uma hipótese. E se amanhã, do nada, você não me visse aqui sentado na colina, para as nossas conversas?

— Seria muito desagradável.

— Seria. Muito desagradável, realmente.

— Mas eu iria tentar descobrir onde é que você se meteu para não vir aqui.

— Mas suponha que você não me encontrasse em lugar algum.

— Você não está pensando em sumir do mapa de verdade, né? Estás estranho.

— Não, não estou, acalma-te. Só suponha.

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— Bem, então eu pensaria que morreste. Ou coisa pior.

— Coisa pior? Pior que morrer?

— Claro! Poderia ser que você estivesse tentando me evitar. Ficaria muito mais chateada.

— Pensando bem, acho que eu também me sentiria pior se você estivesse me evitando.

— Pior do que se eu estivesse morta?

— Não, pior do que estar morto seria ter você me evitando.

— Sabia que você fala coisas muito bonitas?

— Ah, obrigado…

— Não, não fique desconcertado. Até porque as coisas que você fala são bonitas, mas você se justifica de um jeito… Mas não fique desconcertado, está bem?

— Tudo bem. Vou tentar.

— Olha, eu acho que você deveria me escrever.

— Como assim?

— Me escrever uma carta. Falando de amor.

O Sol se escondia no horizonte. A mão dele estava próxima da mão dela. Os corpos estavam próximos. Mas não se tocaram. Ambos orbitavam silenciosamente suas próprias consciências, ávidos por tinta no papel.

Vinícius Zamboneti

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