Uma mulher na sombra

A senhora Alzira faleceu de repente, depois de 30 anos de um casamento, se não feliz, harmonioso.

Sua filha Nadir, sentada ao lado do caixão, enxugou discretamente os olhos com um lencinho de papel e olhou ao redor de si. Viu as costas do pai e a mão da madrinha no braço dele, e logo atrás da mão, uns olhos atentos. Bem atentos e brilhantes. O pai, reparou ela, retribuía o gesto.

Pouca gente havia no velório. Nadir, o pai, a madrinha e alguns vizinhos que já tratavam de se despedir.

  • Voltaremos para a cerimônia. Aliás, a cremação é bem mais bonita. A senhora não acha?
  • Acho triste.
  • Ah, claro. Queira desculpar…
    A madrinha agora aproximou-se, olhos baixos, afastada do pai, e propôs que saíssem para um lanche.
  • Deixando o cadáver sozinho? Nunca.
  • Filha, ainda faltam algumas horas, melhor ir para casa, descansar, tomar um banho, comer algo. Você vai primeiro, eu fico com sua mãe.
  • A madrinha me acompanha?
    Ela observou a troca de olhares entre eles.
  • Claro, vamos.

Enquanto se encaminhavam para o carro, Nadir ia recordando o pouco tempo que passara em companhia dessa madrinha, de quem tinha notícias apenas em duas ocasiões: em seus aniversários e nas vésperas de Natal.

Nos aniversários da afilhada ela enviava um presente, sempre caro, grande, algo que o pai sabia que ela queria muito. Nos natais, enquanto a mãe recebia os visitantes, o pai saía com ela para algumas visitas de praxe a alguns amigos, clientes, parentes distantes. Por último, visitavam a madrinha.

Um dia mudaram de cidade, mas as visitas natalinas continuaram, pois o pai ia visitar a família, e, de passagem, a madrinha. Só que agora as visitas aconteciam em um dia da semana entre o Natal e o Ano Bom.

Vez por outra, à mesa, o pai citava a madrinha, com quem conversara, encontrando por acaso, e a mãe perguntava quais eram as novas.

Certas férias, conversando sob a luz das estrelas, os pais lembraram como se conheceram. Nadir ficou curiosa.
– Um atraso de avião. Greve de aeroporto. Todos dormindo no chão. Meus primos, eu e um grupo de mocinhas.
– Nem me lembre, que transtorno! Eu estava tão mal humorada, e as tontas de minhas amigas a procurarem rapazes para paquerar.
– Paquerar?
– Flertar. Namorar. Ficar. Algo assim.
– Ah… Então vocês namoraram?
– Nada. Sua mãe estava um gelo. Os meus primos eram altos, bonitos, mais espertos e logo trataram de fisgar as mais bonitas.
– Papai, você está chamando a mamãe de feia.
– Gordinha. Ela olhava furiosa para mim e não resisti, disse bem alto “a gordinha é minha”, só de pirraça. Ela ficou toda vermelha.
– Grosso. Fiquei furiosa. Aí ele pediu meu telefone e eu neguei. Ele disse que íamos casar e eu respondi “atrevido”.
– Isso não é uma história de amor.
– Não era, mas virou. Um mês depois eu voei até a casa dela, fui recebido pelo seu avô e pedi a mão de sua mãe em casamento.
– Em namoro, não é, pai?
– Que namoro, criatura? Não existia internet, o telefone era discado, eu morava na Paraíba e ela em Santa Catarina. – Era casar ou casar.
– Assim, feito cigano?
– Bem, eu fiquei uma semana na cidade. Era o tempo de licença que consegui no emprego. Nessa semana eu fiz sua mãe se apaixonar por mim. Ela é uma mulher especial, linda por dentro. Eu não importava com mulheres bonitas. Elas são geralmente bobas, e um dia a beleza acaba. Já a beleza interior, isso é especial.
– Na verdade, eu era feia, gordinha, sem graça e tinha um defeito horrível na cabeça: eu pensava. Seu pai, bem, ele é um homem inteligente. Tão inteligente que percebeu que eu valia a pena. Disso eu gostei nele.
– Eu sempre atraí as garotas pela minha conversa, que eu também nunca fui lá o tipo bonito. Sempre adorei um desafio, e sua mãe foi um desafio e tanto.
– Depois de nos casarmos, bem depois, para falar a verdade, eu descobri que ele estava noivo naquela época. – contou a mãe.
– Nada disso. Noivo, exatamente, nunca fui. Tinha uma menina lá na minha cidade que cismou comigo. Fomos vizinhos, estudamos juntos. Depois fui para a faculdade no Rio e quando voltava de férias a gente ia tomar sorvete, dançar, se divertir. Nunca prometi nada, mas ela dizia que ia me esperar. Arrumei um emprego e fui ficando longe. A menina inventou que era minha noiva. Quando eu apareci por lá e disse a meu pai que ia casar, ele me disse que eu enganara a pobre moça. Eu fui falar com ela. Nunca enganei ninguém. Encontrei uma mulher e vou casar, você também arrume um marido e seja feliz. Ela me disse que nunca ia se casar com ninguém se não se casasse comigo. Tola.
– Se ele tivesse me contado a historia antes… – começou a mãe.
– Antes do que?
– De você nascer, claro. Porque ele veio me dizer que queria convidar como madrinha uma amiga de infância, eu concordei. Só depois de batismo é que meu sogro me contou a história toda.
– Essa amiga de infância era a mocinha apaixonada? A madrinha?
– Bem – disse o pai – ela me telefonou e disse que queria ser madrinha de minha filha. Insistiu. Pediu que eu permitisse ao menos isso, por favor. Eu aceitei.
– Eu cortei logo toda e qualquer visita, que não quero saber de rival dentro de casa, não. Ela foi quem quis manter esse contato, então… acabou assim.

Quando Nadir cresceu, começou a ir sozinha para a casa da madrinha, que agora se mudara para a cidade vizinha. A mulher era intrigante. Sempre bem arrumada, vivia sozinha em uma casa elegante, rodeada de flores, livros e quadros. Dava aulas de pintura, tocava piano, lia poemas. Levava Nadir ao cinema e depois tomavam chá com doces.

-Mamãe, você não tem ciúmes?

  • Eu sou a esposa, a escolhida. Ciúmes? Tenho é pena. Ela é louca mansa, nunca me fará mal. Ela quer ver o homem que ama feliz, e ele é feliz – comigo. Minha vingança. Modo de dizer, claro, que a pobrezinha nunca me fez mal.

Nadir pensou em tirar da madrinha sua parte da história, mas ficou sem jeito. As oportunidades passaram. O velório não era um momento apropriado para o assunto.

Chegando em casa, Nadir ofereceu o sofá para que a madrinha descansasse um pouco. Comeram, trocaram de roupas, voltaram ao velório.

Passou-se o tempo.

Quatro meses depois, no segundo casamento do pai, a madrinha, agora madrasta, descia o altar radiante, de branco, de véu e grinalda.

  • Seu pai casou tão rápido – comentavam as pessoas – A pobre da esposa nem esfriou ainda. Que precipitação.
  • Esperar para que? Ele já está tão velho. – respondia Nadir.

Quanto à madrinha… bem, depois de 30 anos de espera, até que a persistente mulher merecia perder suas ilusões com o homem de seus sonhos.

Nadir lembrava-se da mãe, a aconselhar com ironia:

  • Nunca se case com um viúvo, querida. Você será comparada com a morta. Rival imbatível. Depois de morto, todos nos tornamos perfeitos.

Sonia Regina Rocha Rodrigues

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