Uma história de amor lá da minha terra

Quem nunca desejou viver um amor com trilha sonora? Roubar a cena e passar de figurante a herói?

Esta história se passou em uma cidade do interior, dessas que só tem uma praça, uma igreja, uma escola, um cinema. À frente do cinema, o pipoqueiro. Desde menino ao lado do pai, servia pipoca aos amiguinhos da escola, onde todos o chamavam de ‘o menino da pipoca’. Aos 14 anos herdara o carrinho do pai e a essa altura ninguém mais lembrava seu nome. Na padaria, na quitanda, aonde quer que ele entrasse ele era ‘o pipoqueiro’. Como porteiros e atendentes, um pipoqueiro é aquele tipo acessório em quem ninguém presta atenção, não é verdade? No restaurante, por exemplo, se o pedido demora a chegar, o cliente olha ao redor e não sabe dizer se quem o atendeu foi o gordo, o alto, o bigodudo ou aquele sósia do Leonardo de Cáprio.

No ordenamento político dessas cidades a hierarquia segrega: o padre, o prefeito, o promotor, as famílias tradicionais e “os outros”, divididos entre “os de fora” e os pobres. Está implícito que pobres convidam ricos para suas casas sem esperar reciprocidade, e ricos por questão de conveniência conversam com pobres, a quem dirigem olhares penalizados ou arrogantes tão naturalmente que nem as crianças perceberam quando o coleguinha de escola deixou de ser pessoa para tornar-se parte da paisagem.

Enquanto a sua geração se casava, o pipoqueiro, ofuscado pelos rostos dos galãs na fachada do cinema, manteve-se à parte. Seu gosto artístico e sua cultura se aprimoravam aos poucos, à medida que ele assistia os filmes, ao lado dos bilheteiros, dentro da salinha de projeção, com o aval do dono da empresa. O cinema, uma segunda sala de aula, lhe permitia acesso a outra realidade, a viagens a países distantes, nos quais ele se deparava com idéias e costumes instigantes e enriquecedores. Enfim, o pipoqueiro não se encantava mais com as caipirinhas da roça.

Já sua coleguinha Marlene devia seu nome à diva de longas pernas e herdara da mãe o fascínio pelas histórias açucaradas. Na vida da garota as matinês ocuparam cedo um lugar importantíssimo. Em meados do século XX as crianças aos domingos assitiam desenhos clássicos: Dumbo, Bambi…Menina-moça, na companhia da amiga Iracema, Marlene ousava trocar discretos apertos de mão com o pretendente da hora. Moça, ela experimentou os beijos ardentes  dados ‘no escurinho do cinema’, bem diferente dos beijos os escandalosos mostrados na telona. Casada, os desenhos dos domingos foram um descanso para a maternidade, mesmo porque ela se divertia quase tanto como as crianças. E, finalmente, viúva, que melhor consolo para uma senhora de 40 anos com casa vazia, sem cachorros nem netos, que uma sessão da tarde?

Aquilo virou mania. Maria não perdia um título. Era vista a saltitar pela calçada em uma animação, uma vivacidade nos gestos, uns olhares perdidos, uns suspiros, um riso torto…ai, o filme fora tão bom, tão bom!

As vizinhas (em uma cidadezinha todos são vizinhos) cochichavam com a melhor amiga de Marlene em busca de fofocas. Iracema estranhava o comportamento de Marlene, que, ou era muito astuta ou não havia nada mesmo a surpreender. Ela ia, entrava e saía sozinha, comia seu pacotinho de pipoca e voltava para casa.

Entre um pacotinho de pipoca e outro, aliás, descobriu o pipoqueiro, um cinéfilo dos bons! Ao fim das sessões, os dois trocavam impressões, informações, olhares de quase especialistas em diretores, tendências e enredos.

O fato é que Marlene desabrochava. Festa vai, festa vem, Iracema atenta, mas o enigma não se esclarecia. A viúva murcha retrocedia à adolescência, contava piadas, cantava, gargalhava, até atirava ao padre uns ditos maliciosos. Seria o tal do Alzheimer, doença em voga, que lhe perturbava o cérebro? Qual, a mulher tinha uma memória excelente. Detalhava o enredo de todos os filmes.

Uma tarde, Marlene chegou constrangida à casa da amiga, para ‘um particular’…Iracema cerrou as cortinas da sala, serviu café com bolinhos, impaciente de conhecer enfim o segredo da amiga, que começou hesitante:

– Estou com tanto medo de perder sua amizade.

Iracema, em pânico, imaginou alguma indiscrição do marido.

– Vou casar.

– Ora essa – Iracema, aliviada, perguntou pelo misterioso noivo.

– Carlinhos.

– E eu lá conheço algum Carlinhos?

– O pipoqueiro.

A cena forneceria closes divinos para um clímax. Os olhos arregalados de Iracema, sem fala. A expressão suplicante de Marlene. As colherinhas de café escorregando para o tapete felpudo. A câmera passeando lentamente pela sala ricamente mobiliada, pararia na janela e através da estreita fresta da cortina, do outro lado da praça, o humilde pipoqueiro.

Que de uns meses para trás aparentava mais alegria e um apuro de maneiras. Sempre de rosto escanhoado, cabelos aparados, colarinhos imaculadamente brancos, unhas esmaltadas (notara alguém) e até (observação da própria Iracema) um cheirinho de sabonete de lavanda mesclado ao odor habitual do milho.

No entendimento de Iracema, as peças foram-se encaixando. Há semanas, aliás, ela já se dera conta do fato, sem querer se render ao óbvio.

Os anos passando, o menino bom que brincava no recreio de esconde-esconde aparecia a servir pipocas quentinhas acompanhadas de gentis sorrisos. Rapaz educado, bem humorado, em frente a ele quantas confidências foram trocadas! Adultos, o pipoqueiro mimava com imitações e brincadeiras os filhos das antigas coleguinhas, quem sabe com uma atenção especial para as crianças de Marlene.

Marlene viúva, ainda bela, a oportunidade de ousar. Uma palavra gentil aqui. Um olhar ali. Uma frase mais longa hoje. Uma confidência amanhã. Uma cumplicidade de roçar de dedos ao pegar o saquinho das pipocas. Enfim…

Por que não?

Iracema completou o raciocínio em voz alta:

– Sempre é tempo de ser feliz. Se o povo falar, deixe que falem, eles não pagam suas contas.

Marlene abraçou a amiga com gratidão e a convidou para madrinha.

O povo comenta até hoje o romance entre a dama da sociedade e o pipoqueiro, história de amor mais bonita que muito filme premiado, por ser verdadeira.

Sonia Regina Rocha Rodrigues

 

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