Minha estrela é você

Dê play e leia esse texto ao som de Yellow, Coldplay. 

Ei estrelinha, como vão as coisas?

Por aqui vão bem. Ontem lembrei de você. Comprei mais um vinil de uma banda desconhecida dos anos 60 em um sebo ao lado daquela padaria que te falei, aquela do café meio amargo que tanto gosto de tomar.

Na verdade, penso em você todos os dias. São coisas mínimas, detalhes que vejo por aí que me remetem imediatamente a sua voz, ao seu cheiro ou ao som da sua gargalhada que ressoava pelos quatro cantos, como um aviso ao mundo: ei, eu sou descaradamente feliz e você vai ter que aceitar.

Eu estou fazendo o que você me pediu, aliás. Comecei as famigeradas aulas de inglês que tanto fugia por odiar gramática, seja ela de qual país for. Confesso que no início foi bem difícil lidar com pessoas dez anos mais novas que eu, com tanta facilidade de aprendizado, e eu, todo equipado com calça jeans, blusa de banda e alguns fios de cabelo brancos que já deduraram minha idade de cara. Mas tudo bem, eu gosto deles.

Eu aprendi a gostar deles com você. Que me dizia, passando as mãos suaves pela minha cabeça, que ter cabelos brancos era um privilégio. Naquela época eu não entendia o porque dessa afirmação descabida mas, hoje, bem, hoje eu entendo completamente.

Ah! Ontem encontrei aquela sua amiga do óculos de grau engraçado na loja de produtos naturais. Ela está um pouco mais magra e casou-se mês passado. Quando me viu, sorriu e disse: “Quanto tempo! Bom te ver por aqui”, saindo logo após da sessão de doces sem açúcar dizendo que estava com pressa porque seu marido estava indo buscá-la.

Engraçado isso. Muitas pessoas fogem quando me veem. Eu não julgo elas, deve ser difícil não saber o que dizer. Talvez eu não saberia o que dizer também. O que elas não sabem é que eu estou me saindo muito bem. Gostaria que elas sentissem algum orgulho talvez, mas não pena. “Quem tem pena é galinha João!”, você me dizia toda vez que te olhava com olhos de saudade.

É mentira esse conceito de saudade que ouvimos falar, inclusive. Sim, agora que estudo inglês me tornei uma espécie de questionador de palavras. Saudade: sentimento de sentir falta de tudo aquilo que já passou. Que coisa mais sem fundamento. Senti saudade de você muito antes daquela tarde de outono meio chuvosa. Senti tanta falta de você e isso não foi – nem por um minuto – sua culpa, que fique claro. Sua presença preenchia meu mundo.

Me disseram que, no início, tudo seria escuridão. Posso te confessar sem medo de julgamentos que não, não foi tudo tão escuro assim. Seus passos ainda estavam acesos em cada rua que passou. E o vento, aquele que balança as árvores da Rua do Meio todo dia, às 16 horas, ainda passava em busca de bagunçar seu vestido. Os vizinhos continuavam fazendo barulho todo final de semana, atrapalhando nossos filmes em VHS. E o meu coração, estrelinha, meu coração ainda batia por você!

Naquela tarde de outono meio fria você segurou a minha mão, entrelaçando seus dedos aos meus e disse, com uma voz enfraquecida mas não menos firme, que eu deveria olhar para o céu, toda noite. Que não importaria se as nuvens estivessem cobrindo o horizonte, ou eu estivesse exausto demais de tanto chorar. Eu deveria olhar para o céu todas as noites de todos os dias e achar a estrela mais rebelde. “Bia, mas como assim estrela rebelde?”. A que brilhasse de um jeito bem diferente, a que estivesse fora de qualquer constelação visível aos olhos. Que eu buscasse ela porque – ela segurou minha mão com um pouco mais de força – ela sempre estaria lá, brilhando por mim e iluminando cada dia que fosse cinza demais para merecer a qualidade de incrivelmente bom de ter sido vivido.

Depois dessa tarde você partiu. Na mala eu tenho certeza que levou cada minuto de tudo que vivemos. Coisas boas, dificuldades. Levou um pouco da alegria do mundo que gargalhava por aí. Levou tudo e me deixou aqui porque, segundo me falou, eu precisava estar aqui para ver o quão bonito seria ver você irradiar luz fora do padrão, apenas para irritar os observadores de cada planetário. E eu aceitei, como aceitei sempre tudo que vinha como vendaval de você e me atingia como brisa de primavera. Nada em você me doía. E, quando entrei em casa depois daquela tarde, sentei no sofá e agradeci a imensidão que foi te ter comigo.

Raquel de Póvoas

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